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VALESCA GONZAGA & CHIQUINHA POPOZUDA [Parte I]

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Boas ideias às vezes surgem de piadas em festas, um exemplo disso é o livro Orlando da Virgínia Woolf. Um outro exemplo é este post.

Havia uma festa na casa de um casal de amigos argentinos e, não lembro por quê, alguém falou em Chiquinha Gonzaga. Muito interessados em cultura brasileira, perguntaram:

– Quem é Chiquinha Gonzaga?

– É a Valesca Popozuda do século XIX – respondi automaticamente e sem pensar.

Os argentinos não conheciam Chiquinha, mas já tinham brasilidade suficiente para saberem quem era Valesca. Os brasileiros da festa riram muito. Passado o riso, alguns se sentiram na obrigação de expor os comentários padrões:

– [insira aqui qualquer comentário típico sobre o trabalho de Valesca Popozuda]!

O engraçado é que eu comecei a reparar que o que falavam com relação ao funk da Valesca era E-XA-TA-MEN-TE o mesmo que falaram do maxixe de Chiquinha na sua época. Era devasso, sem conteúdo artístico, típico de pessoas pobres e sem instrução para reconhecer uma boa música e que jamais ia tocar numa casa de respeito/família (relembrando que isso era o que era dito sobre CHIQUINHA GOZANGA).

A produção musical de Chiquinha foi influenciada pelas rodas de lundu, umbigada e outros ritmos africanos totalmente desprezados pela elite branca, que exaltava sua ascendência d´além-mar, por terem origem negra e por serem considerados imorais pois eram dançados de forma bárbara balançando a pélvis (tradução: mexendo o bumbum). O que se considerava “de bom tom” ouvir/dançar era, claro, as músicas que vinham direto da Europa, como valsas, fados e, o cúmulo da animação musical europeia, uma polca. Chiquinha não só compôs todos estes estilos como ainda colocou o ritmo africano dentro das harmonias europeias, resultando num som brasileiro.

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Para ilustrar mais uma vez a visão que a sociedade tinha de Chiquinha Gonzaga, seus companheiros de choro eram homens que muitas vezes tocavam violão. Até mais ou menos 1930, violão era um instrumento proibido de se entrar numa casa de respeito. Alguém que sabia tocar violão era imediatamente chamado de vagabundo e boêmio e acusado de que ia trazer desarmonia àquele lar – agora imaginem o que não se pensava sobre uma mulher que andava com esses homens. Só o desejo de ressaltar as coisas tipicamente brasileiras abriram as portas das casas para este instrumento que é a cara do Brasil e que se tornou a base das músicas que mais identificam nosso país no exterior, como o choro e a bossa nova.

Chiquinha Gonzaga foi ganhando o status de artista à medida que foi surgindo um sentimento de brasilidade mais forte com a queda do império e declaração da república, e encontros com artistas já consagrados que declararam admiração à qualidade de sua obra. Dentre eles, merece destaque Carlos Gomes (link), que infelizmente é uma personalidade brasileira tão esquecida, apesar de ser ouvida todas as noites quando toca na abertura de A voz do Brasil sua ópera O Guarani. Valesca começa a encontrar agora um certo apoio dentre alguns acadêmicos, outro tanto de artistas descolados, um professor de escola pública de uma cidade satélite de Brasília e a massa para quem ela canta.

Só depois de 1920 foi que Chiquinha viu seu trabalho ser apresentado como música e ela ser chamada de artista – inclusive esteve presente na luta pela legislação dos direitos autorais. Até então ela era apenas uma mulher imoral, que escrevia músicas pornográficas para tocar em cabarés e teatros de revista, lugares em que as pessoas dançavam balançando a bunda. Hoje quem faz balançar a bunda é o funk de Valesca Popozuda.

As aventuras da dupla Chiquinha Gonzaga e Valesca Popozuda contra a hipocrisia artística e pela representação da mulher continuam na próxima semana.

Até lá.

13 comentários em “VALESCA GONZAGA & CHIQUINHA POPOZUDA [Parte I]

  1. Notempo
    3 de julho de 2014

    Apenas genial!

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  2. Saulo Alberto
    3 de julho de 2014

    Muito bom! Parabéns pelo texto!!! Só li verdades.

    “O engraçado é que eu comecei a reparar que o que falavam com relação ao funk da Valesca era E-XA-TA-MEN-TE o mesmo que falaram do maxixe de Chiquinha na sua época. Era devasso, sem conteúdo artístico, típico de pessoas pobres e sem instrução para reconhecer uma boa música e que jamais ia tocar numa casa de respeito/família (relembrando que isso era o que era dito sobre CHIQUINHA GOZANGA).”

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  3. Tales
    3 de julho de 2014

    Gato, excelente comparação. É a história e suas espirais de repetição renovada (e redistribuída) :p

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    • Ítalo Damasceno
      3 de julho de 2014

      Às vezes uma loucura dá certo, né?? E se a própria Valesca concordou, tá mais do que certo. =***

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      • Tales
        3 de julho de 2014

        De fato, ninguém melhor do que ela para dizer como o próprio trabalho é enxergado e vivido =p

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  4. Bruno Sousa Lopes
    4 de julho de 2014

    “Penso Logo Existo, Penso Logo Existo. Descartes, quem disse isso?”
    Walesca “mitando” desde sempre…

    Adorei o texto! Parabéns!!!

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  5. Pingback: VALESCA GONZAGA & CHIQUINHA POPOZUDA [Parte II] | Eu tô ficando é velho, não é doido não!

  6. Caio
    15 de agosto de 2014

    Brilhante a comparação. E o Peru rodou? (Piada interna!) rs…

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  7. Luciana
    23 de setembro de 2014

    Interessante. Muito interessante. Já ouvi uma vez que é possível contar um monte de mentiras dizendo só a verdade. Pois é, todos essas coisas são ditas a respeito da Valesca e foram ditas na época da Chiquinha. O que não foi dito é que a a Gonzaga possuía um conhecimento musical tão vasto que era possível a ela fazer tantas misturas. Já dona Valesca…

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Publicado às 3 de julho de 2014 por em História, Músicas e marcado , , , , .